No candomblé, tudo o que fazemos está ligado ao alimento, seja alimento para a alma, seja alimento para o corpo. Mas sempre estamos alimentando.
Nas vezes em que estive em Oyo, percebi muito o sentido de comunidade, de alimentar a comunidade, independentemente de sua crença ou status social. Se eu tenho comida, meu vizinho não passará fome.
Aqui no Brasil, nas comunidades que conheço, também o alimento é ofertado e dividido entre todos os presentes nas festas e comemorações. Por menor que seja, sempre terá algo para comer e dividir entre os presentes. Portanto, as casas de candomblé costumam fazer comida simples e substanciosa, que é para matar a fome dos que precisam e dividir com quem chegar.
Não se elabora um cardápio pensando nos visitantes. Primeiro se pensa no Orixá, no que será servido ao Orixá. Depois se pensa no que iremos preparar, com o restante, para os visitantes, sempre pensando que não serão poucos, portanto, tem que sobrar.
Conversando com um amigo nigeriano sobre Xangô, ele me disse que o orixá do trovão tem sua predileção por amalá e gbegiri, mas podemos oferecer quase tudo pra ele. Numa ocasião, ofertamos um porco para Xangô, coisa que aqui no Brasil, seria um sacrilégio. Em Oyo, na Nigéria, não se oferta, de forma alguma, ewedu para Xangô, pois ele odeia essa iguaria. Eu até achei que ele gostava, pois comemos muito amalá com ewedu por lá e eu logo assimilei a baba das folhas com a baba do quiabo.
Há algumas diferenças entre Oyo e Brasil, por exemplo, em Oyo, o amalá é feito de farinha de inhame, no Brasil, a base de nosso amalá é o quiabo – algo que não se tem o costume de oferecer a Xangô em Oyo, a não ser que se queira pedir filhos, pois o quiabo somente é oferecido a Xangô quando a pessoa quer crianças.
No Brasil, assim como em Oyo, que é o local que conheço, o culto ao orixá é feito por pessoas em sua maioria humildes, portanto, a comida é parte primordial desse culto. Muitas casas de candomblé, devido à predominância de adeptos de pele branca e maior poder aquisitivo, estão alterando o cardápio dos orixás para um cardápio com opção para os frequentadores veganos, outro para os que controlam as calorias a serem consumidas e, muitas vezes, se desfazendo das partes dos animais que seriam destinadas à divisão/alimentação da comunidade.
A comida sempre foi muito importante nas comunidades, não só como alimento, mas como comunhão entres os indivíduos e o sagrado. Por ser o momento em que compartilham o alimento com o orixá, portanto, não faz sentido oferecer à comunidade alimentos que não foram ofertados ao orixá. Precisamos comer fisicamente e comer espiritualmente, comer emblematicamente.
Citando Raul Lody:
“Todos os sentidos são chamados para comer. Todos os códigos visuais, térmicos e olfativos funcionam diante da relação homem/comida. Come-se por inteiro, com o corpo, com a ética, com a moral, com todos os códigos próprios do grupo e do estatuto social de que o indivíduo faz parte. E, assim, a comida intera-se, estabelece-se nas relações mais profundas entre o homem e a cultura.”
“Nos terreiros a comida ganha dimensão valorativa, sendo entendido o alimento do corpo e também do espírito. Comer, nos terreiros, é estabelecer vínculos e processos de comunicação entre homens, deuses, antepassados e natureza.”
Num terreiro, tudo come: o chão, a cumeeira, os atabaques, as portas etc. E tudo o que os humanos comem foi compartilhado com os orixás que já comeram, portanto, não vejo nenhum sentido em se fazer uma comida para os humanos usando ingredientes que não foram, antes, ofertados para os orixá.
*Esse texto foi escrito com base em minhas experiências pessoais, não generalizando o candomblé do Brasil.
Autor: Flávio de Paula
Revisão: Adriana Marino e Renata Barcelos