Por Adriana Marino
Minha proposta, aqui, é o de tecer alguns comentários a partir do vídeo intitulado “Você é cristão? Veja até o final”, disponível em redes sociais, do vereador (PRTB-BH) Nikolas Ferreira. Esse vídeo começa com o rapaz dizendo: “se você é cristão, então veja esse vídeo” e dessa chamada extraímos um primeiro elemento: apesar de ser uma figura pública, de o vídeo ser de domínio público, estar numa rede social amplamente utilizada pela população, principalmente a jovem no país, traz uma mensagem na qual se depreende que apenas cristãos veriam o vídeo ou que este vídeo estaria destinado somente a cristãos; sem abertura para interpelações, apesar de usar imagens e fazer comentários que atingem outras populações – inclusive ateus, agnósticos, não cristãos ou até cristãos que, porventura, discordem ou sintam-se atingidos pelo conteúdo do vídeo.
O problema não é apenas o conteúdo, mas a forma. Trechos de vídeos e recortes de imagens são selecionados e mostrados rapidamente, permeados por rápidas e sequenciais afirmações, sem desenvolvimento e contextualização. As afirmações são proferidas em série, como se constituíssem, em si mesmas, cadeias de pensamentos irrefutáveis e sem oportunidade de questionamento. Em outros termos: uma afirmação é seguida de outra afirmação que é seguida de outra. Desse modo, o vídeo acaba por induzir, em quem quer que o assista, à mesma afirmação. A forma condiz com uma estética atraente, nos moldes atuais: vídeos curtos, retórica marcada por asserções chamativas como em textos e vídeos sensacionalistas. Há ausência de hipóteses em meio a uma tomada de posição que, tendencialmente, visa uma suposta ou porvir hegemonia.
Então, uma mulher de roupas tradicionais de matriz africana, é mostrada fazendo uma reza para Xangô com votos ao possível candidato de 2022, Lula. Quando a mulher diz: “ninguém vence a força de Xangô”, o menino expressa uma feição caricata de dúvida. Cabe ressaltar, neste ponto, que a concepção sobre “vencedores” e “vencidos” estabelecidos em tradições diferentes, não se aplica, isto é, não faz sentido. Mas, estrito senso, para quem conhece um pouco de Antropologia ou estuda um pouco religiões, consegue apreender que Xangô e Jesus – como ressalta o rapaz – não venceriam um ao outro. Se servir para instigar a curiosidade, poderíamos conjeturar que se Jesus vence, Xangô também vence. Assim como se Xangô perde, Jesus também perde. Apesar de não se aplicar, mesmo uma contradição poderia ser refutada. Por isso é ruim falar sobre o que não conhecemos ou ficarmos repetindo o que se propaga em mídias sociais por aí: o embate chega a ser pífio.
Na sequência, a mulher apresenta-se, circunscreve-se como sendo representante da Umbanda do Ceará. Isto é, diz de um pequeno grupo de pessoas, colocando-se como uma representante dessa específica comunidade. Nesta representação, diz para o Lula: “vamos mudar o país”. Não se trata de uma fala que fira a moral de qualquer pessoa ou tradição, pois não se disse, sequer, que essa mudança seria para pior, pra deixar tudo ruim ou coisa que o valha, nem que a sua religião pretendia ser oficial do Estado. Aliás, Lula se diz Católico. Para representar uma comunidade qualquer não precisamos depreciar outras. Em outras palavras, para nos afirmarmos não precisamos destruir os outros. Crianças fazem isso e ensinamo-las que isso é falta de educação e civilidade. A mulher, então, entrega uma estatueta de Zé Pelintra e o menino do vídeo interrompe dizendo que devia ser “pilantra”. Penso que podemos nos tranquilizar quanto ao desrespeito aqui, mesmo porque, chamando o Zé de pilantra, a representação que me vem seria a de ouvirmos uma boa rizada e nada mais. Provável que nem ligasse pra isso, pra estatueta, pro Lula nem pro boy.
Aí cita um autor, Lewis, sobre “as pessoas mais perigosas do mundo”, que seriam divididas entre as que espiritualizam tudo e as que nada espiritualizam. Não bastasse a frase de efeito repetida e os riscos de reduções deterministas em dualismos como este, vem o problema maior: uma afirmação já de conclusão. A conclusão é a seguinte: “Então se você não entendeu que isso é uma guerra espiritual…”. Enquanto ele conclui, eu pergunto: Da onde o rapaz tirou essa conclusão? É uma afirmação e é isso o que parece importar. Vem, na sequência, outra afirmação, mas pior, a de que “o mundo pede pra gente” – mas quem é o mundo? E continua: “o mundo pede que a gente respeite todas as religiões, menos a nossa”. De onde ele tirou essa afirmação? O mundo, segundo ele mesmo, diria que se respeitem as religiões, menos uma e que essa seria “a nossa”. Acho importante, aqui, lembrar que tivemos mais de 300 anos de escravidão de pretos no país e que, majoritariamente, esses mesmos pretos tinham e, alguns, ainda têm suas tradições negadas, proibidas e colonizadas por pessoas e instituições que se reivindicam cristãs. Mas, na hipótese de a “nossa religião” ser a única desrespeitada, continuemos com o vídeo até o fim.
Ele diz: “porque quando um presidente exalta a imagem de Jesus, daí nós somos chamados de fundamentalistas religiosos”. Não sei se é erro ou má-fé, mas vou partir da ideia de que seja um equívoco para comentar (já que o “porque” não era uma pergunta). Um representante de Estado democrático, portanto, não totalitário, deve representar um Estado laico. Isso está na base da Constituição da Democracia brasileira e, por isso, não se trata de algo a ser, exatamente, desconhecido. Um Estado laico e seus representantes maiores devem ter em mente e, acima de todos, a Constituição de 1988. O custo disso é que, mesmo que um presidente tenha uma religião particular, na sua vida privada, ele não pode colocar isso acima de uma República – res publica, quer dizer “de todos” – mas, sim, contemplar a todas as comunidades religiosas. É simples assim: um presidente, no seu exercício público, pode exaltar tanto Jesus quanto Xangô, e ao mesmo tempo, pois, na qualidade de representante do povo, todos devem ser contemplados representativa e respeitosamente. Isso compõe a atividade política, já que, não sendo sem conflitos, busca-se a arte do convívio e, idealmente, o convívio harmônico e respeitoso das diferenças.
Depois de uma delonga retórica, vem outra afirmação, a de que “odeiam o cara [Bolsonaro], por causa disso aqui [mostra uma imagem de Bolsonaro numa igreja]”. A visada é de convencimento por reiteração de afirmações. Afinal: quem “odeiam”? Não há discriminação de sujeitos nas suas falas de afirmação, são genéricas e generalistas. A questão é que não se deve odiar ou amar um representante político pela sua fé privada. O que podemos e devemos, enquanto cidadãos, é criticar – no âmbito do assunto em questão – quando houver imposição ou tentativa de imposição de uma específica expressão de uma crença privada. Novamente, um Estado deve ser laico e acolher todas as tradições e expressões de fé. Portanto, não é verdade que “odeiam” (quem quer que o rapaz pense que odeie) Bolsonaro por ele ir a uma igreja, ou por ser evangélico ou de qualquer outra religião. Isso não interessa, não deve interessar, à condução política de um Estado. Um representante de Estado pode, igualmente, receber orações de qualquer um, sem que isso se constitua como um evento público a ser noticiado. Não é relevante para a condução política de um Estado.
Na sequência, vêm termos como: “burro, ignorante ou inocente”. Nessas horas, me pergunto por que desses atributos em qualquer contexto de expressão como num vídeo de TicToc. Beleza. Enfim, comenta que “nunca se teve uma abertura tão grande para a igreja igual no governo Bolsonaro”. Aqui, considero que ainda dê tempo para entendermos um princípio básico de nossa Democracia: o Estado é laico. A separação entre Igreja e Estado se deu, mesmo tardiamente no Brasil, no final do século XIX. Portanto, não vou me ater ao mérito de que a cristandade sempre teve mais expressão neste país. O que interessa ao debate, no quesito mesmo de romper com ignorâncias, é que a separação entre Poder Religioso e Poder de Estado se deu não sem motivos – marcando o fim da Idade Média –, pois os problemas se davam porque um único homem achava que era encarnação de Deus na Terra e, a partir disso, seu poder era total… totalitário e, sobretudo, arbitrário.
Em seguida, aparece uma imagem com um homem segurando um cartaz e um comentário sobre cristãos que podiam ser de esquerda. Há, inclusive, uma ofensa sobre o corpo do homem e emenda uma série, como para aplacar a possibilidade de cristãos adotarem diferentes orientações políticas: da “foice e do martelo”, o movimento feminista “que só mata criança dentro do ventre”, que cristão vai “ter que escolher se fica do lado disso [uma imagem em que dois homens se beijam]”, “defender o aborto”, “legalização das drogas” “destruição das nossas famílias… valores e princípios”, “saquearam nosso país”, “destruíram a inocência das nossas crianças” (não sei se, aqui, alude-se à mamadeira de piroca), “não possui um pingo de temor a Deus” (pois é, não se precisa de temor a qualquer divindade quando o assunto é política de Estado).
Por fim, o rapaz conclui, em tom leve e calmo, que as pessoas que odeiam o presidente “querem atacar, na verdade, o criador”. O rapaz traz um discurso no qual anseia, saudosamente, que um homem encarne poderes divinos ou – o que dá no mesmo – que representantes religiosos (pastores, padres, freiras, babalorixás etc.) encarnem poderes políticos. Mais precisamente, como se depreende do vídeo, um Deus de uma única vertente religiosa. Tudo se passa como se um presidente não pudesse ser criticado nos termos mesmos de sua posição e condução política. Como se tivéssemos que engolir um novo Messias – desde que ele seja exatamente conforme anseia o rapaz. Isso porque o criador, para esse rapaz, é somente como ele pensa que é. Eis um discurso que se pretende total, totalizante e que, portanto, é potencialmente totalitário. O rechaço se dá, de minha parte enquanto cidadã, a esse tipo de discurso. Um discurso cuja série de afirmações e ausência de dúvidas aponta para uma-única-e-absoluta-certeza (perdoem a redundância nos termos daqui). Portanto, a crítica que teço não se dirige a sua pessoa nem a qualquer comunidade religiosa. Amém pra quem for de amém. Axé pra quem for de axé. Falou pra quem for de falou. Abraços