REVISTA OLORUN, n. 56, novembro de 2017 ISSN 2358-3320 – www.olorun.com.br – autorização de re-publicação consentida a Orisa Brasil.
Por Luiz L. Marins www.luizlmarins.com.br
RESUMO
Este texto transcreve extratos do vídeo publicado por Awo Ilésire Sòwunmí na página de seu templo no Facebook Ìjọ Ifá Òtúrá Orí’re àti Ilé Àṣẹ Ọbàtálá Ọ̀ṣẹ̀rẹ̀màgbò Ilédì Awodélé, no qual fala sobre os cargos de ogan, ekedi e o ato de raspar durante as iniciações, na visão a religião tradicional ioruba.
INTRODUÇÃO
É sabido que as diversas etnias africanas que vieram para o Brasil durante a escravatura, aqui formaram diversas religiões afro-brasileiraslocais, sendo que, cada uma se adaptou a uma determinada região do Brasil, criando sua própria forma, rito, costumes, cargos e conceitos. Das religiões afro-brasileiras que foram organizadas no Brasil, o candomblé foi o que mais destacou na mídia, por diversos fatores. Um deles, pode ter sido por estar presente, na época, nas capitais federais como Salvador e Rio de Janeiro. A forma adotada pelo candomblé, devido a este destaque, foi mais nacionalmente conhecida, o que fez com que alguns de seus cargos e formas iniciáticas se tornassem uma espécie de “padrão nacional”, em detrimento das outras formas adotadas pelas demais religiões afro-brasileiras, por isso, desconsideradas. Entretanto, com o advento da internet, a África entrou nas casas, novos esclarecimentos foram disponibilizados ao público afro-brasileiro, principalmente por sacerdotes do segmento chamado de “Tradição” nos anos 80 e 90, e atualmente conhecido por Ìsèsè (Ixéxe), mostrando a realidade do outro lado do mar. Bàbá Zarcel Carniell, ou Awodélé Ilesíré Sówùnmí, jovem sacerdote do Ìsèse, fala-nos sobre os cargos de ogan, ekedi e ato de raspar, esclarecendo estes temas segundo o entendimento da religião tradicional ioruba, não com a intenção de criticar, mas de mostrar que tais cargos e atos pertencem ao candomblé, e não necessariamente existam ou tenham a mesma forma na Iorubalândia. Entendo ser importante estes esclarecimentos, interessa-nos aqui transcrever parte do vídeo citado, especialmente as falas sobre ogan e ekedi. O texto aqui transcrito foi autorizado por Baba Zarcel. O vídeo completo pode ser visto neste endereço, publicado em 21/10/2017, e acessado em 22/10/2017. https://www.facebook.com/ijoifaoturaorire/videos/1909237625753838/
EXTRATOS E TRANSCRIÇÃO
Minuto 00:01 – apresentação Olá queridos amigos e seguidores do nosso templo no Facebook, sou o Bàbá Awodélé Ilesíré Sówùnmí, Zarcel, sacerdote do templo. Pessoal, hoje (21/10/2017) fazendo a live, sábado, às vinte e uma horas e oito minutos, falando sobre um tema bem bacana, que é a questão de ogan e ekedi: tem na religião tradicional ioruba? Então, aqueles que se interessam pelo assunto, sejam muito bem-vindos, é um prazer poder falar com vocês.
Minuto 02:47 – introdução Na religião tradicional ioruba existe ogan e ekedi?
Não, não existe. Ogan e ekedi foram cargos criados dentro do culto afro-brasileiro denominado candomblé. Não existe ogan e ekedi na religião tradicional ioruba. Qualquer templo de religião tradicional ioruba que tenha ogan e ekedi, trata-se de um templo que está misturando os conceitos do culto afro-brasileiro com a religião tradicional. Não me cabe julgar se é certo ou se é errado. Me cabe dizer que dentro da tradição ioruba não existe ogan e ekedi.
Minuto 03:22 – ogan A palavra ogan vem da palavra ògá [então] ògá mi significa “meu chefe”. É a forma como nós nos referimos àqueles que são nossos mestres. É como se designa as pessoas superiores a nós.
Minuto 04:05 – ekedi Ekedi vem da palavra èkejì, que é a segunda pessoa mais importante […] você tinha a Dilma Russef presidente, e o Michael Temer vice. Michael Temer é èkejì Dilma Russef. Michael Temer é o vice-presidente. Então isso é importante deixar claro. Então, baseado nisso, a gente conclui que o cargo de ogan e ekedi foi uma criação do culto afro . Existem várias explicações para isso, não me cabe aqui julgar se está certo ou se está errado.
Minuto 04:55 – cargos na religião tradicional ioruba Eu não estou aqui falando sobre candomblé. Estou aqui falando sobre a religião tradicional ioruba. Então, na religião tradicional ioruba não existe o cargo de ogan e ekedi, não existe. Os cargos na religião tradicional ioruba variam de acordo com os cargos que o sacerdote do templo tem autorização para dar na sua comunidade. Não são cargos criados, ele tem que ter autorização dos seus superiores para poder dar estes cargos para os seus seguidores. Todos os cargos existem com a finalidade de organizar aquela comunidade na sua estrutura social e religiosa. Então é muito bacana deixar isso claro.
Minuto 05:49 – mulher tocar atabaque Uma questão: na semana passada foi colocada uma questão em uma comunidade (no Facebook) onde questionaram se mulher pode tocar atabaque. Disseram que no candomblé não pode, e eu respeito: no candomblé mulher não pode tocar atabaque. Dentro da religião tradicional ioruba, mulher pode tocar, sim, alguns instrumentos, como o agogô em alguns casos, xéqueré principalmente, e alguns tambores sagrados. Mulher não pode tocar alguns tambores específicos, principalmente aqueles que possuem consagração no Orixá Ayan, pois compete aos homens que são iniciados, consagrados nesse orixá cuidarem destes instrumentos. Outros, mulher pode tocar. Mulher só não pode tocar instrumento quando ela está menstruada, assim como mulher não pode mexer com alguns orixás quando está menstruada, como mulher não pode, se for sacerdotisa, consultar erindinlogun, opele-ifa e principalmente ikin.
Minuto 06:57 – a menstruação Então, o tabu é a menstruação, até porque, na visão ioruba, a menstruação, ela é um tabu. Tanto que os maridos, na Nigéria, eles não se relacionam sexualmente com suas 5 esposas quando elas estão menstruadas. Mas isso não é porque espiritualmente é ruim, é porque eles não gostam. Então, eles têm toda uma lenda criada em torno disso. Então é bacana as pessoas entenderam o que é espiritual de fato, e o que é lenda. Então, existem alguns tabus para a menstruação. Mulheres que ainda não menstruam ou que já entraram na menopausa, em vários cultos elas passam a poder realizar muitas coisas, inclusive, até mais do que os homens. É bacana deixar isso claro também. No candomblé dizem que mulher não pode tocar atabaque, tudo bem, bacana, a gente respeita, e o meu intuito aqui não é mudar essa tradição, até porque, não faço parte dela, respeito, e não quero mudar nada.
Minuto 07:58 – mudanças no candomblé Agora é uma questão. É engraçado eles lutarem tanto pelo fato de mulher não poder tocar atabaque, e a gente vê hoje em várias casas de candomblé coisas que há tempos atrás não eram comuns, como a questão do homem na cozinha. Antigamente existia uma mulher específica para cuidar disso [mas] hoje em dia, os caras cozinham. Tinham determinadas nações que os caras não podiam nem dançar na roda, hoje em dia eles dançam. Pano de cabeça, antigamente era proibido, aí teve um rapaz aí que colocou, ficou famoso, e para alguns, é um revolucionário. Então, é uma questão muito delicada.
Minuto 08:31 – jogo de búzios em opon [Outra] questão muito delicada é a questão do jogo de búzios se jogar em opon Ifá, não pode, e tem um monte de gente que joga em opon Ifá, o tabuleiro de Ifá, não tem nada a ver com Orixá. A peneira de orixá chama até-orixá, ou se joga no pano branco, axó funfun, mas, tudo bem, cada um faz o que der na sua cabeça.
Minuto 09:00 – os homens e o atabaque Então, estou falando isso tudo para vocês entenderem a seguinte questão porque que popularmente, a questão do toque do atabaque ficou muito mais associada à figura masculina. Primeiro, por conta do orixá Ayan. Segundo porque, para poder se tocar o Ilú, 6 os tambores, exige-se uma certa força, exige-se uma certa resistência, e o homem acaba, em alguns casos, tendo mais que a mulher para isso. Por isso ficou muito mais comum, mais popular, a questão do homem tocar o atabaque, o tambor, ou seja lá o nome que se dê. Mas isso não significa que mulher não pode em hipótese alguma, inclusive, existem alguns rituais aonde a mulher tem que tocar, e não há nenhum problema ou conflito quanto a isso. Então, deixando claro quanto a isso, não existe ogan, não existe ekedi. O homem que toca atabaque é chamado simplesmente de onilu. Assim como a mulher que desenvolve a atividade musical também pode ser chamada de onilu, desde que se respeite alguns tabus. Então não tem problema.
Minuto 10:24 – a pessoa que não incorpora A pessoa que não incorpora, e aquela que incorpora, para a tradição ioruba, não tem diferença nenhuma. A diferença é que, uma, quando o orixá manifestar, vai fazer a performance, e a outra, não vai ter manifestação. Ponto final. Uma coisa não torna um ser mais ou menos especial que o outro. Até porque existem alguns orixás em território ioruba que não tem transe, não tem manifestação, não tem incorporação. Então é bacana deixar isso claro também.
Minuto 21:46 – sobre a criação do cargo de ogan A lenda que eu sei é que algumas sacerdotisas, no princípio do candomblé, para poder prender certos filhos na casa, como pessoas importantes da política, militares, enfim, e não submete-los à iniciação de fato, davam a eles o cargo de ogan, para poder ter esta pessoa importante dentro do templo; e algumas mulheres que eram importantes na sociedade e não podiam ser submetidas ao ritual de iniciação, também recebiam o cargo de ekedi. Isso é a lenda que já escutei, muitas vezes inclusive quando eu morei em Salvador, eu morei lá dois anos, isso é bem propagado lá. Se é verdade, ou não, eu não sei. A origem do cargo de ogan e ekedi, de fato, eu não sei. Eu conheço esta lenda, esta possibilidade, não sei se ela é a única, ou se ela é real.
Minuto 22:58 – Xangô e a raspagem dos cabelos Essa questão de não poder mais raspar para Xangô, ou não, é relativa. Se a pessoa foi iniciada em Xangô e quiser ser iniciada em Ifa, não tem problema nenhum ser iniciada e não raspar. A raspagem do cabelo não é um ritual obrigatório. É dos vários rituais que podem ou não acontecer durante uma iniciação. Inclusive, existem pessoas que não podem raspar a cabeça, como alguns filhos iniciados para Xangô, não todos. Mulheres que tem determinado odu Ifá, como por exemplo, Oxé Meji, que proíbe ter cabelo curto assim igual ao meu, e orienta a pessoa ter cabelo grande. Então, não se raspa. O problema é que no Brasil se criou a ideia que toda iniciação tem que raspar a cabeça e ficar carequinha, e isso, na tradição ioruba, não é como funciona, pelo menos, dentro do que eu aprendi, dentro da minha família.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Como vimos, a fala de Baba Zarcel é muito clara e enfática. Os cargos de ogan e ekedi são criações do candomblé, necessários que foram para sua fundamentação e sobrevivência em terras brasileiras, mas que não existem na religião tradicional ioruba. Baba Zarcel esclareceu também sobre a questão do ato de raspar, mostrando que tal ato na religião tradicional ioruba, diferente do candomblé, o ato de raspar não é sempre obrigatório, pois dependerá da pessoa ato, do oráculo, havendo casos que se raspa, e outros que não se raspa. O batuque do Rio Grande do Sul ficou por muito tempo isolado e praticamente desconhecido para a maioria do povo de santo, possuindo usos e costumes completamente, mas completamente mesmo, diferentes do candomblé. O batuque não é um tipo de candomblé, em hipótese alguma, e nem tem nele qualquer origem, pois tem sua identidade própria
Como todas as religiões afro-brasileiras, para sobreviver, também criou na diáspora, algumas formas próprias, mas assim como outras, também manteve alguns costumes da matriz ioruba. Alguns dos costumes que o batuque conservou encaixam-se perfeitamente na fala do Baba Zarcel, como por exemplo: a) O batuque não possui o cargo de ogan. b) O batuque não possui o cargo de ekedi. c) O batuque possui o cargo de onilu. d) No batuque, mulheres podem tocar o tambor, com algumas regras. e) O batuque não raspa a cabeça para fazer os atos iniciáticos. f) No batuque a possessão não é obrigatória, embora ocorra. g) O sacerdote pode acumular os dois cargos, de babalorixá e de onilu. h) No batuque, Xapanã não veste palha. i) No batuque não se usa adja. Usa-se a sineta, tal como os iorubas. j) As contas e colares do batuque são muito parecidas com a dos iorubas. k) No batuque os Orixás se portam livremente, não são ensaiados, podem vir com olhos abertos e falar. l) No batuque o Orixá, quando em possessão, pode ser consultado diretamente durante rituais e cerimonias. m) No batuque não existe o cargo de “axogun”. O ato do sacrifício é feito diretamente pelo babalorixá ou iyalorixa. Assim, entendemos que a fala do Baba Zarcel é muito importante para o batuque, pois mostra que, ressalvadas as adaptações que se fizeram necessárias, o batuque conservou muitos costumes iorubas que ainda não são de uso em outras religiões afro-brasileiras, e que agora, na era da internet, tornaram-se conhecidos. Daí nosso interesse em registrar este extrato, mostrando que o batuque, em sua simplicidade, tem o lugar e o seu valor dentro do cenário religioso afro-brasileiro, e precisa ser respeitado da forma como ele é.