Frederico Martins é advogado em São Paulo, também formado em Filosofia, pela USP. O encanto pela cultura afro-brasileira brotou da literatura e se intensificou durante a sua passagem pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, mais propriamente pelo departamento de Antropologia.
A relação do inhame com Oxaguiã – ou Òrìṣà Ògiyán, orixá jovem e guerreiro, originalmente cultuado em Ejigbô – exprime verdadeiro contraponto do pensamento nagô em relação à filosofia cristã. Se, para a tradição religiosa ocidental, o sagrado é acessado, de olhos fechados, através da subjetividade humana, para a tradição legada pelos iorubás este mesmo acesso se dá de olhos abertos graças à transformação material da natureza em cultura.
Agostinho de Hipona – ou Santo Agostinho, como ficou conhecido na tradição ocidental – foi um dos grandes expoentes da filosofia cristã e também o responsável por transformar a fé em verdadeiro combustível para o exercício subjetivo do pensamento. São célebres, por exemplo, as passagens de sua obra Confissões em que reflete sobre as “dádivas” de um “Deus invisível, que as semeias nos corações de teus fiéis”, e das quais “nascem frutos admiráveis”. Para Agostinho, a “Verdade” só pode ser “saboreada” no “fundo do coração” e acessada por “olhos invisíveis”, pois é somente da quietude também invisível do coração que o Deus da tradição cristã se comunica com a sua principal criação: os homens.
A esta maneira subjetiva de pensamento e de mergulho na interioridade contrapõe-se o pensamento nagô, “filosofia que começa na cozinha da casa em vez de nos desvãos da metafísica”, como ensina Muniz Sodré. Trata-se, portanto, de um modo de pensamento africano que se origina e se mantém na objetividade material das ferramentas que preparam a terra, da lenha que aquece o fogo, da panela que cozinha o sagrado e das mãos humanas que transformam a natureza em cultura.
Entre as diversas expressões desta “filosofia a toque de atabaques” destaca-se a importância de certos elementos materiais na constituição das próprias divindades nagôs, como o inhame para Oxaguiã – ou Òrìṣà Ògiyán, orixá jovem e guerreiro, originalmente cultuado em Ejigbô, onde se tornou rei, Elejigbô. Escreve Pierre Verger que uma das principais característica deste orixá funfun é o seu “gosto descontrolado pelo inhame pilado”, o iyán, razão pela qual lhe foi atribuído o apelido de “Orixá-Comedor-de-Inhame-Pilado”, ou, em iorubá, Òìṣà-jẹ-iyán, Òrìṣàjiyán ou Òrìṣàgiyán.
A tradição mitológica ensina que o inhame amassado era a comida preferida de Oxaguiã, razão pela qual o jovem guerreiro jamais se sentava à mesa se faltasse o tubérculo. Narra também o mito que Elejigbô só pôde vencer todas as guerras e se fartar de comer o inhame graças à invenção do pilão, que facilitou o preparo do inhame. Por conta disso, surgem duas importantes consequências rituais: como descreve Pierre Verger, quando um filho desta divindade é por ela possuído, traz sempre à mão um pilão como alusão simbólica à sua preferência alimentar. E mais: a festa que lhe é oferecida todos os anos nos candomblés é chamado de “Pilão de Oxaguiã”, em que “uma procissão leva ao barracão pratos contendo inhame pilado e milho cozido, sem sal e sem azeite de dendê, mas com limo da costa”.
É importante ainda destacar que a preferência de Oxaguiã pelo inhame não apenas está de acordo com a materialidade da tradição dos orixás, mas a confirma cada vez que os mitos passam a se relacionar. Conta a mitologia dos orixás que uma grande fome se abateu sobre o povo de Oxalá, pois, de tanto que se passou a comer o inhame, não se dava mais conta de plantá-lo. A saída desta situação foi oferecida por Ogum, que em sua forja fez ferramentas de ferro. Novos objetos materiais, como a enxada e o enxadão, a foice e a pá, o ancinho, o rastelo e o arado surgem, então, para que se plantasse e colhesse muito inhame. E mais: devido ao inhame, cultivado graças à objetividade do ferro, a fome foi erradicada de Ejigbô.
A partir de tais narrativas míticas, nota-se verdadeira inversão entre as filosofias cristã e nagô: se, de um lado, o sagrado é acessado, de olhos fechados, através da subjetividade humana, de outro lado, este mesmo acesso se dá, de olhos abertos, graças à transformação material da natureza em cultura. Em outras palavras, o cultivo da terra por meio de instrumentos materiais possibilita a colheita do inhame, matéria que satisfaz a fome do povo de Ejigbô, constitui a própria divindade iorubá que carrega o tubérculo em seu nome e demonstra, assim, o modo material de acesso simbólico ao sagrado.
Referências bibliográficas:
Agostinho, Santo, Bispo de Hipona. Confissões. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2017
Prandi, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001
Sodré, Muniz. Pensar nagô. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017
Verger, Pierre Fatumbi. Orixás deuses iorubás na África e no Novo Mundo. Salvador: Corrupio, 2002