1) Dra. Paula pode nos contar um pouco sobre a senhora. Como e quando teve contato com a religião do Orixá pela primeira vez?
Eu fiz os meus estudos universitários na Alemanha e um dia sentada na biblioteca à procura de material de apoio para a disciplina de história, encontro um livro de Pierre Verger “ OS ORIXAS” que despertou a minha curiosidade acabando por dar origem a uma busca para obter mais conhecimento sobre o tema.
Fiz um percurso de leitura de diversos livros sobre este tema e em maio de 1992 decidi viajar para a Nigéria com destino à cidade de Oxobo, que naquela altura pertencia ao Estado de Oyó, pois ainda não tinha sido criado o Estado de Oxum.
De mochila às costa e passaporte nas mãos embarquei com destino à cidade de Lagos, Nigéria, tendo o meu primeiro contato com o solo nigeriano, uma experiência única, apos as portas do avião se abrirem um cheiro intenso da terra misturada com vida me receberam, foi algo que me marcou profundamente.
A viajem até Oxobo foi uma aventura, mas valeu a pena, pois apesar de não conhecer ninguém naquela época, fui recebida por uma comunidade acolhedora.
Posteriormente conheci Susana Wenger, Adunni Olorisa, quem me acolheu muitas das vezes na sua casa e às vezes fazia parte da sua rotina diária na floresta sagrada, não como artista, mas sim ajudando a apanhar lixo no rio, assim como cortar o excesso de mato nos lugares mais sagrados. Aprendi com ela que existem 42 pontos sagrados no rio de Oxum e tive o prazer de conhecer alguns desses pontos.
Desde a minha primeira visita em 1992 que o Orixá começou a fazer parte da minha vida sem eu saber, comecei anualmente a visitar Oxobo, Oyó e outras localidades na terra Ioruba, participando de vários festivais de Orixá de família em diversas comunidades.
Tive a honra e privilégio de conhecer e poder conviver com sacerdotes de Orixá de uma humildade e simplicidade profunda que deixaram marcas na minha jornada e que são até ao dia de hoje grandes pontos de referência.
2) E o que fez com que a senhora saísse de sua terra natal para ir morar em terras Iorubas?
A terra ioruba faz parte de 25 anos do percurso da minha vida que marcaram muito a minha forma de estar na vida. Anualmente visitava a terra Ioruba no mínimo 2 vezes, podendo aprofundar mais o meu conhecimento sobre culto do Orisa, até que um dia decidi vir viver para Oyo.
Na verdade, sempre me senti em casa, sem imaginar de que um dia iria viver aqui, o que não fazia parte dos meus planos de vida. O povo de Orixá em Oyó sempre fez parte da minha caminhada, na verdade Oyó sempre foi um local muito especial.
A Susanna Wenger sempre falava de Oyó e Ilé-Ifé e os sacerdotes destas 2 cidades frequentavam muito a sua casa. Oxobo e Oyó mantem um elo de ligação que tem sido mantido de geração em geração, especialmente durante as festividades de Oxun em Oxobo e o festival de Xangô em Oyó.
Os sacerdotes de Oxun de Oyó sempre fizeram parte das cerimonias festivas de Oxun em Oxobo e a Arugba de Oxun sempre saiu para rio na sexta-feira de Xangô conhecida como Jakuta Oloyin (o final dos 28 dias do calendário tradicional) e nesta mesma sexta-feira começa o festival de Xangô em Koso-Oyo.
Retomando a cidade de Oyó e como já foi referido anteriormente esta comunidade sempre foi especial, mas extremamente silenciosa ao ponto de se pensar que a tradição ao Orixá de família já estava extinta, mas felizmente acontece exatamente o contrário.
Oyó é uma comunidade muito tradicional, bem estruturada, sendo um lugar com uma riqueza tradicional única.
Aproximadamente 8 anos numa das minhas visitas a Oyó e em conversa com o povo de Xangô, tomei a decisão de conhecer o Alaafin. Solicitei ao povo de Xangô ajuda na marcação de uma visita.
Fui apresentada ao gabinete de ministros do Alaafin, Oyó Mesi, precisamente ao Basorun, para uma possível audiência com o Alaafin. Esta não me foi negada, mas a minha insistência durante dias e dias fez com que a audiência com o Alaafin fosse finalmente marcada.
Durante a visita ao Alaafin o foco foi de salientar a importância de preservar o Patrimônio Cultural de Oyó, principalmente a restauração dos templos antigos, como apoiar e manter o povo de Orixá motivado a transmitir o conhecimento aos mais novos, sendo o Alaafin a única entidade tradicional a quem recorrer.
No final da visita Sua Majestade convidou-me a colaborar com ele na preservação ao Patrimônio. Fiquei sem palavras e sem saber o que responder, pois esta missão seria impossível para mim, mas a voz do meu coração falou mais alto e aceitei tentar.
3) Há quanto tempo mora na Nigéria?
Quando aceitei o desafio pensava que já sabia muita coisa, pois tinha 18 anos de vivencia na terra Ioruba, já tinha passado por muitas experiências em várias comunidades, conhecia muitos sacerdotes de diferentes Orixá e com o decorrer do tempo, com a convivência diária, passando bons e maus momentos com a comunidade, cheguei à conclusão de que estava simplesmente no início. Uma nova etapa de vida com desafios diários, tentando entender e aprender tudo aquilo que os olhos e as palavras não transmitem.
Vivo em Oyó há cerca de 7 anos e continuo a tentar com muitos desafios, muitas tempestades, com momentos difíceis e também muitas alegrias.
4) A senhora criou a fundação Pgculturalfoundation. Pode nos contar um pouco mais sobre ela?
Sim, a fundação Paula Gomes Cultural Foundation foi fundada em 2012 na Nigéria com a finalidade de angariar fundos para restauração dos templos, com o objetivo de ajudar a elevar o Patrimônio Cultural e Histórico Ioruba a ser reconhecido mundialmente, colaborando na conscientização sobre a importância da preservação do Patrimônio Material e não Material.
Participar na restauração dos templos de Orixá mantendo o seu estado original, assim como incentivar e restaurar o orgulho nas comunidades para identificar, proteger, promover, documentar e revitalizar o Patrimônio, a fim de transmitir o conhecimento de geração em geração.
A comunidade tradicional de Orixá é muito pobre e durante anos e anos foram discriminados, inclusive sem condições de poderem frequentar o ensino escolar não só por falta de meios financeiros, mas também por discriminação religiosa. Sem preservar o Patrimônio Material que motiva o Patrimônio Imaterial (a pratica à religião) deixa de ser um Patrimônio vivo, perde a continuidade e entra em extinção.
Até ao dia de hoje todas as recuperações realizadas foram 11 templos naturais na comunidade de Oyo e foram financiados por mim juntamente com o rei e dois grandes amigos que doaram para finalizar o trabalho de 2 templos juntamente com a mão de obra da comunidade.
6) Vemos a senhora sempre muito ligada ao Alaafin de Oyó. A senhora exerce algum cargo dentro do Império do Alaafin?
Sim, eu trabalho diariamente com o Alaafin na preservação e recuperação ao Patrimônio Cultural. Recebi o título Honorário de Embaixadora Cultural do Império de Oyó dado por Sua Majestade Oba (Dr.) Olayiwola Adeyemi III, O Alaafin de Oyó.
7)Quais seriam os principais desafios para o culto dos Orixá Ioruba em curto prazo e a longo prazo para que preservem a ancestralidade em sua opinião?
Na minha opinião existe muito trabalho pela frente, continuar com a recuperação dos templos é uma prioridade, pois é uma forma de motivar os devotos ao Orixá continuarem a cultuar e transmitir o conhecimento do Orixá de Família de geração em geração e motivar as novas gerações de Orixá a continuar as tradições e crenças de suas famílias, mostrando-lhes os seus valores.
Continuar o trabalho de união nas comunidades de Orixá de família, respeitando suas diferenças e suas lideranças, afim de obter mais poder para poderem juntos lutarem pelos seus direitos como cidadãos e serem reconhecidos a nível governamental.
8)Os festivais de Orixá vêm atraindo muitos turistas para Nigéria. Existe algum plano de expansão do turismo em terras Iorubas? Em sua opinião a Religião Tradicional Ioruba pode contribuir ou já está contribuindo socialmente e economicamente para Nigéria?
Sim, felizmente os festivais de Orixá estão atraindo mais turistas para a Nigéria e claro que a Religião Tradicional pode vir a contribuir socialmente e economicamente para a Nigéria, mas existe ainda um longo caminho a percorrer, pois o governo não colabora o suficiente.
9) Dra. Paula, a senhora pode definir em suas palavras como é a religião dos Orisa na Nigéria como ajuda as pessoas, como a senhora tem presenciado essa religião na vida das pessoas.
A religião dos Orisa na terra Ioruba é uma religião formada de diversas tradições e não tem um único formato. As crenças religiosas Iorubas fazem parte de contos, canções, histórias, e outros conceitos culturais que compõem a sociedade Ioruba.
Esta é uma religião de família ou por outras palavras, pode ser definida como Micro Sistemas Religiosos Diferenciados, o culto a Oxum é diferente do culto a Xangô e vice versa, cada um é único e especial.
Devido à migração de grupos étnicos, os povos misturaram se e implementaram seus cultos noutras regiões, assim como o culto a Egungun, Oxum, Xangô entre outros são cultuados de forma idêntica nas diferentes regiões conhecidas hoje em dia como a terra Ioruba.
No entanto é muito importante salientar de que a expansão do Império de Oyó, costumes, língua, tecnologias, cultos, etc. do povo de Oyó dominaram e expandiram em várias regiões conhecidas com a terra Ioruba, sendo as estruturas dos reinados e os próprios palácios de cada região micro reinados de Oyó.
Por outro lado, tem que se entender a estrutura política e religiosa dos Iorubas que está interligada e dependente do rei (OBA). O reinado na terra Ioruba é uma introdução à religião do Orixá que por sua vez o rei está ligado ao Orixá (Oba Igbákejì Òrìsà). Não existe rei se não existir Orixá, pois é o Orisa que delega os poderes para reinar e dar poder de supremacia.
10) Como a senhora tem presenciado essa religião na vida das pessoas?
A religião tradicional faz parte da identidade e da vida quotidiana da comunidade, no entanto com a entrada do cristianismo e islão a estrutura religiosa das comunidades sofreram alterações radicais, como destruição dos templos tradicionais que virarem banheiros públicos, descriminação as famílias tradicionais que foram forçadas a deixar de cultuar o Orixá em público e esconder seu Orixá de família para não serem destruídos, queimados, roubados ou vendidos. As famílias que conseguiram preservar o Orixá de família sofreram grande descriminação, não tendo frequentado o ensino escolar ou terem que “doar” seus filhos as novas religiões para terem acesso escolar.
Muitas famílias perderam a ligação ao culto do Orixá de família, depois dos mais velhos da comunidade terem falecido. Muitas das crianças que foram convertidas ao cristianismo ou ao islão e maior parte daquelas que regressaram as suas raízes tiveram dificuldade de reentrarem através do Orixá de família.
E muito importante o trabalho de resgate ao Orixá de família, principalmente restaurando os templos antigos da comunidade e dar apoio as famílias que conseguiram preservar o culto do Orixá para que o conhecimento seja passado as novas gerações e não caia em extinção.
Infelizmente o culto do Orixá de família está a sofrer novamente grandes transformações através da Criação de Novos Mitos, com o propósito de eliminar ou subjugar o culto ao Orixá, colocando novamente em perigo de extinção o culto ao Orixá de família, alterando o conceito da religião tradicional primordial de louvor a Olodumare (Criador Supremo) através do Poder Delegado aos Orixá.
11) Para as pessoas que querem conhecer a terra dos orixás, qual seria sua sugestão? É preciso ter algum cuidado especial? Qual o conselho que a senhora pode dar para uma pessoa interessada em entrar no culto de Orisa Tradicional ao buscar um sacerdote Nigeriano?
A minha sugestão para quem gostaria de conhecer a terra dos Orixá, é que todo aquele que ama o Orixá deveria conhecer esta terra, mas deve vir de coração aberto e saber que vem para uma realidade e cultura totalmente diferente e ao mesmo tempo tomar muito atenção, “pois nem tudo o que brilha é ouro”.
O conselho que dou é para nunca virem para a Nigéria sem conhecer alguém de confiança.
12) Muita gente no Brasil pensa que o culto de Orúnmila é a religião tradicional dos Iorubas. De fato, estamos vendo uma expansão muito grande do culto a Orúnmila no Brasil. Gostaríamos de saber se o culto de Orúnmila está crescendo mais na Nigéria que outros cultos dos outros Orixá? Tem mais pessoas se iniciando no culto a Orúnmila por alguma razão?
O culto de Orúnmila não é a Religião Tradicional dos Iorubas, mas sim, Orúnmila que é um dos Orixá que pertence do panteão Ioruba. Religião Tradicional dos Iorubas é o culto ao Orixá.
Relativamente à expansão do culto a Orúnmila está ligado ao fato dos seus devotos não terem sofrido um nível de descriminação equivalente à dos outros cultos, pois antigamente não existiam templos de Orúnmila nas comunidades.
13) O Asa Orixá lançou recentemente um vídeo no qual o babalaô Ifatokun afirma que o obi e eerindinlogun são mais velhos que o ikin. Então, gostaria de perguntar se esta informação é apenas regional para Oyó, ou é válida para todas as cidades
Esta informação não é só regional, pois a religião tradicional é composta por micro sistemas religiosos independentes composto pelos Orixás de família. Se os Orixás de família estão espalhados por toda a terra Ioruba, como pode esta informação ser regional para Oyó?
Segundo os contos, histórias, canções e fatos históricos apontam de fato de que o Obi e o eerindinlogun são mais velhos que o ikin, gostaria de citar uma passagem do Alaafin:
“At the primordiais times, these advisers used in their Àdáàsà divination system, pieces of ivory, nuts and seeds and later introduced the cowries shell, known as the Owó Eyo Érìndínlógún (16 cowries divination system), being used till today.
Throughout the evolution and migration, the Ifá divination system of drawing marks on the sand or cam wood with Arabic origin, incorporated into their stories and system various tales, plays aspects and religious structures and functions of the Ioruba Òrìsà Mythology, as the ìtàn (stories), complex songs, histories and other cultural concepts, which make up the Ioruba race. “
“Nos tempos primordiais, estes conselheiros utilizavam em seu sistema de adivinhação, conhecido como Àdáàsà, peças de marfim, nozes e sementes e mais tarde introduziram os búzios, conhecidos como Owo Eyo Érìndínlógún (sistema de adivinhação dos 16 búzios), sendo usado até hoje. Ao longo da evolução e migração, o sistema de adivinhação conhecido como Ifá, utilizando a forma de desenhar marcas na areia ou no pó da madeira com origem árabe, incorpora em suas histórias e sistema, vários contos, historias, estruturas religiosas e funções da Mitologia Ioruba do Òrìsà, como o Itan (contos), músicas complexas, histórias e outros conceitos culturais, que compõem a raça Ioruba. ”
14) Em 2014 a comitiva do Alaafin Oyó esteve no Brasil, vimos que a senhora acompanhou a comitiva nos terreiros do Brasil. A senhora pode nos contar qual foi a impressão que tiveram dos cultos no Brasil?
Sim, acompanhei a comitiva e apesar do tempo ter sido muito curto para definir uma ideia, o que trouxe comigo dessa viajem foi o respeito por um povo que lutou num novo mundo para poder deixar às novas gerações um pouco da identidade da sua origem.
15) Gostaria de deixar aqui um espaço livre para que a senhora deixe uma mensagem, um conselho aos brasileiros.
A mensagem que gostaria de deixar aos brasileiros é que a Religião Tradicional Ioruba é uma religião de família, onde não existe supremacia entre os orixás, mas sim humildade, simplicidade e respeito. Orixá é vida!
Se quiser conhecer mais o trabalho da Dra Paula Gomes acompanhe:
Site: https://asaorisaalaafinoyo.wordpress.com/
Facebook: https://www.facebook.com/pgfoundation.oyo
Facebook: https://www.facebook.com/asaorisa
e-mail: asaorisa@gmail.com